quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

O Cancelamento e o Casamento da Censura

 



A Língua sempre recebe novas palavras ou modifica o sentido de antigas para acompanhar o desenvolvimento comunicativo das pessoas, desde 2019 há uma palavra que causa certo medo em artistas, trata-se da palavra cancelamento. Essa palavra reflete um fenômeno chamado de cultura do cancelamento, em 2019 foi eleita como palavra do ano no dicionário australiano Macquare, aproxima-se muito do termo boicote, porém o boicote é em produtos específicos, já o cancelamento é não só no indivíduo, como também em sua obra atual e até mesmo posterior. O termo repercute  na literatura também, um exemplo foi o ocorrido com J.K. Rowling, autora de Harry Potter, que foi acusada de transfobia em razão de um comentário que agradou. Outros sinônimos aproximados são: nulificar, extinguir, abolir, cessar etc.

                A palavra não vem sozinha, afinal se o artista se redimir, ele pode ser descancelado, assim aparece o prefixo {dês-}. Muitos artistas populares receberam o cancelamento como Anitta e Gustavo Lima, o cancelamento é caracterizado por um linchamento virtual, que pode atingir parte do público do artista, mais engajado com políticas de esquerda, porém não consegue ser pleno e total. O cancelamento também induz os artistas a terem sua opinião vigiada, criando assim um tipo novo de censura, afinal não se trata de governo a censurar, e muitos que pedem o cancelamento, não são necessariamente fãs e consumidores dos artistas.

                Outro fator negativo, quando o cancelamento tende a adentrar em épocas distintas, por exemplo, Monteiro Lobato sofreu campanhas para cancelamento, ora, a função da obra, sobretudo literária, não é ser um espelho do artista e sim de uma época, o caso de Lobato, entrou o dilema, se não cancela, há de se mudar elementos da obra. A censura abraça o cancelamento em núpcias de ódio, começa a controlar, sobretudo novos artistas, que temem, o cancelamento em seu público incipiente, uma censura eficaz, bem insípida para os que lutam pela liberdade de expressão, criando um terreno tênue, movediço, onde os canceladores de hoje, podem ser os cancelados de amanhã.

 

(Ricardo Gomes)



quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Voto Impresso ou Voto Auditável

 


Alegações de fraude nos EUA, suspeitas de fraudes na Venezuela, a democracia pode ser fraudada? A necessidade de verificar votos é cada vez mais imperiosa. Uma alternativa, sugerida pelo  excelentíssimo presidente Jair Bolsonaro, é usar o  voto impresso, onde a pessoa vota na urna eletrônica, recebe um comprovante e coloca o comprovante em uma urna física, assim os votos podem, posteriormente, passar por uma auditoria. Aqui entra o problema linguístico, em 2015 houve uma Ação Direta de inconstitucionalidade (ADI) que votada em 2018 decidiu que não se deve usar o recurso do voto impresso, assim usar o nome voto impresso, não seria um erro?  Muitos usam o termo voto auditável, como escolher um termo? Acho que a semântica chegou, acabo de ouvir a campainha.

                Não raro o nome de um objeto confunde-se com noções anteriores do mesmo objeto, além disso, há políticos que usam da semântica (sentido das palavras) para confundir, um exemplo ocorrera quando se debatia o projeto Escola Sem Partido de Miguel Nagib que era apenas uma síntese de leis já existentes, mas que transformaram em algo que proibiria debates e pluralidade de idéias. O nome não se reduz a uma questão de marketing, mas também de peroração (onde o nome resume a totalidade da idéia), isso é importante para convencer a população e evitar sofismas.

                Analisando os dois adjetivos mais usuais:  impresso e auditável, é perceptível que há diferenças, sobretudo quando se imagina um púbica alvo lato, com pouca formação, ou formação anoréxica, um público ainda cativo de discursos na grande imprensa, o nome voto impresso, causa uma certa nostalgia e até insegurança, um ministro do STF chegou a dizer que “voto impresso seria um retrocesso é como comprar um vídeocassete” (G1 06/11); percebe-se que o nome “voto impresso” tende a ser de fácil refutação, quando não há compreensão. Já o termo voto auditável, por sua vez, acaba sendo erudito em demasia, o que traz algumas vantagens, entender o nome acompanha o entendimento do que ele sugere no contexto específico, porém a virtude do nome também é seu problema, por ser um termo mais erudito, pouco comum, acaba sendo difícil atingir a população, sobretudo sem o apoio da grande imprensa, que hoje, é quem consegue manipular aquilo que Maingueneau chama de os discursos constituintes (discursos constituintes são formas de expressão e termos que tendem a ser copiados, antigamente eram escritores que realizam tal tipo de discurso, revelando os modelos da boa expressão, atualmente, cabe a grande imprensa ). Um nome diferente para voto impresso, indica uma melhor saída, há alternativas como voto verificado, voto confiável, ou até mesmo voto duplicado, o mais importante, agora, talvez seja compreender que a luta política não prescinde da luta lingüística.

 

 

 

G1 Presidente do STF diz que “voto impresso seria um retrocesso” in: https://g1.globo.com/es/espirito-santo/noticia/2020/11/06/presidente-do-tse-barroso-diz-que-voto-impresso-seria-retrocesso.ghtml acesso em 10/12

 

MAINGUENEAU: Dominique: Discursos constituintes trad. Anail Sobral. São Paulo: contexto, 2006.


terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Reeleição e recondução, ou como rasgar uma constituição

 


Com o fim do mandato de Maia e Alcolumbre, câmara e senado respectivamente, o STF foi acionado para resolver um problema, pode reeleição? Ou recondução? Nas duas palavras o prefixo {re-} equivale a repetição, porém é a palavra recondução que encontramos na constituição de 88, lembrando que não havia reeleição para o executivo quando surgiu a carta magna, essa virá posteriormente em emenda. Em seu art. 57 parágrafo 4.º lemos:

Art.57 § 4º Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subseqüente. 

            Com o termo “vedada a recondução” percebe-se que há uma proibição constitucional para a reeleição. Ponto, sim ponto, haveria dúvida, não, mas como estamos no Brasil e as leis podem mudar em razão da pessoa a qual se dirige, haverá dúvida, ou sofismas.

            Um dos argumentos é chamado de interna corporis onde cabe à câmara e senado decidirem sobre suas Mesas Diretoras, daí segue-se que como não há uma regra interna, ficam livres para reeleger os seus presidentes, também lembram  que senado e câmara devem seguir a constituição, que agora permite reeleição no executivo!  Ora, se há uma constituição que veda a recondução, mesmo que exista regimento interno, esse não poderá ser contrário à constituição, salvo se fizerem uma emenda constitucional, ademais há uma diferença entre executivo e legislativo. Outro argumento, nada plausível é de que são legislaturas diferentes, como se isso retirasse a recondução!

            Leis arbitrárias, palavras que perdem seu sentido, novas palavras, falta de questionamento são ingredientes para uma receita insípida.

domingo, 22 de novembro de 2020

Vacina anti-covid ou vacina anticovid?

 

                       Palavras novas, regras antigas. A pandemia, ou sindemia, trouxe-nos novas palavras, novos conceitos e velhos problemas. Um velho problema, que não fora resolvido com a reforma ortográfica, é racionalização no uso do hífen. A ortografia determina a escrita correta das palavras, contribui para uma comunicação precisa e revela um ordenamento do discurso entre gerações. Não seria estranho, encontrar uma analise histórica com o título: conflitos norteamericanos no século XX. Nossa, o autor fez uma pesquisa de um século e não escreve corretamente o nome do país?  Isso acontece, pelo menos em nosso Brasil letrado.

                A chegada de uma vacina trouxe o termo vacina anti-covid, ou vacina anticovid. Vejamos o que sustenta a regra do uso do hífen quando temos o prefixo grego {anti-}, segundo a regra o hífen só poderá ser usado em dois casos; a) quando o segundo elemento começa por h: anti-higiênico; e b) quando terminam com vogal idêntica a que inicia o segundo elemento: anti-ibérico e anti-infeccioso. Logo não há razão para hífen em vacina anticovid.

                Mesmo assim é comum jornais optarem pelo termo com hífen, sobretudo UOL, Terra e Veja, por exemplo, o protocolo da CBF para segurança e prevenção do vírus chinês, ganhou o nome de protocolo anti-covid!!! Vale lembra que fazendo uma assimilação com outro termo, muito comum na área da saúde, temos anticorpos, que também não possui hífen.

                Tal fato, aparentemente irrisório, revela, por outro lado, como não existe um cuidado com o léxico, o que assusta, pois é muito comum, currículos abandonarem os nossos mestres literários e usarem jornais como exemplo de uso da língua materna, nossos jornais que mal conseguem usar um hífen!

 


segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Great Reset e Stackeholders – Estrangeirismo e Dominação

 

                 “Com o lockdown e os problemas gerados, percebemos que esse é o momento de um novo Bretton Woods, um great reset, para um Stackeholders capitalism”. Difícil entender? É bom nos acostumarmos com alguns termos, para não sermos enganados por modismos. Apesar de parecer, não se trata de um discurso meramente econômico, esse trecho acima possui implicações sociais, psicológicas e até metafísicas! Vamos traduzir:

                “Com o isolamento e os problemas gerados, percebemos que esse é o momento de um novo acordo de Bretton Woods, um grande reinício, ou grande recomposição, para um capitalismo de grupos de interesse”.

                Continua complicado, afinal não se trata de apenas traduzir, sem o conceito que há nas palavras a interpretação fica difícil, porque esbarra na compreensão, sem o conceito, aproxima-se de algo técnico, distante dos neófitos mortais, por isso a tradução em Língua Materna é algo importante, para não suficiente, já usar o termo em inglês pode distanciar o falante da sua Língua e das relações semânticas envolvidas, e como temos um novo conceito, ou aplicação de um conceito antigo, podemos insistir que é melhor a Língua traduzir e anexar o conceito, do que exportar o termo estrangeiro com seu conceito. O caso do Lockdown é um bom exemplo, o termo isolamento é mais agressivo, triste, revela mais participação individual e coletiva do que lockdown, assim como confinamiento no espanhol. Assim, quando usamos um termo estrangeiro, perdemos os laços semânticos, deixando livres os que manipulam as palavras, deixando livre a manipulação de forma positiva, algo que, não raro, está longe de ser positivo.

                É uma questão que envolve a gramática, sobretudo quando comparamos as soluções em outras línguas, vamos dividir o texto em duas partes, na primeira tentar entender os termos e na segunda como está a solução em nossa língua.

                 Great Reseat: as dívidas governamentais aumentaram, sobretudo com políticas como a do isolamento durante a pandemia do vírus chinês, consequentemente, caminhamos para um calote, as agendas ambientalistas continuam a sustentar que o homem causa mudanças climáticas, lutam por uma política de descarbonização, controle populacional, mudança alimentar etc. Seria o ser humano capaz de construir um bom futuro, sem mudar as bases que sustentam este mundo? Durante a pandemia, ocasionada pelo vírus chinês, muito se falou de um governo mundial, acima das nações, para tomar decisões, ora, haveria como reconfigurar o capitalismo, dando-lhe valores sociais e sustentáveis, com a colaboração dos governos? Para isso haverá coisas como afrouxamento de liquidez bancária, renda mínima, maior controle social das pessoas e dos créditos, ou seja, um governo de tecnocratas e fim dos Estados nacionais como conhecemos, e também, sem direito a votar em quem coordena tudo isso.

                Stackeholders – serão os encarregados de cooperar e administrar as consequências, sendo partes interessadas, mas não necessariamente incorporadas ao projeto.

                Vejamos agora como fica a questão da tradução, para great reset muitos sítios usam: grande recomeço, outros usam o termo grande reinício. Em espanhol temos gran reinicio, termo encontrado no próprio sítio do Fórum Econômico Mundial; o termo reinício soa bonito, e mais próximo da proposta do que recomeço, apesar de o mais justo ser grande reconfiguração, afinal é uma mudança na configuração de relações financeiras, sociais, geográfica, morais etc, e no Brasil o termo reset traz a noção de desligar um dispositivo para que ele volte à função anterior, ou normalidade, outra tradução mais próxima do conceito seria redefinição: grande redefinição, ou até mesmo grande recomposição, porque não será de imediato e sim paulatino, porém o homem considerar que pode reiniciar o mundo de uma forma melhor, soa mais para uma perigosa hipérbole socialista do que para um novo conceito de capitalismo.


segunda-feira, 9 de novembro de 2020

De “mulher” para “pessoa com vagina”, Quando a Metonímia Substitui o Ser

 

A metonímia é uma figura de linguagem bastante conhecida, por exemplo, quando pedimos uma xícara de café, café trata-se do conteúdo, do conteúdo que está na xícara, assim temos uma troca entre o continente e conteúdo. É uma figura de linguagem elegante, que conta com o conhecimento do ouvinte/leitor. A metonímia pode ser usada em várias situações: autor pela obra, marca pelo produto, parte pelo todo, exemplos: dormi com Cecília Meireles, comprei um Iphone, chegou o narigudo.

                A metonímia é usada para identificar pessoas, até aí nenhum problema, por exemplo, hoje acordei mais cedo que o padeiro, onde a profissão substitui a pessoa, mas será que o órgão sexual, poderia ser um definidor da pessoa? Há uma matéria que trata de câncer de colo do útero, logo, o público alvo imediato é quem tem útero, e quem tem útero são mulheres, mas o termo mulheres soa ofensivo!? A folha publicou uma matéria sobre higiene íntima feminina, ora, trata-se de mulher, mas o termo mulher soa ofensivo. O argumento é que ser mulher não é um fator biológico, não se resume aos cromossomos XX, ter útero, menstruar, ter glândulas mamárias, não, para alguns o termo mulher refere-se a uma preferência pela feminilidade, logo não é algo fechado, um homem pode ser mulher. Não se trata de uma simples metonímia que tende a tornar a linguagem mais atrativa, mas sim de uma metonímia que vem para substituir o todo, a parte substitui o todo, o órgão sexual define a pessoa, a metonímia substitui o ser. A figura de linguagem sai da estética e entra na ética. A passagem da conotação para denotação não é tão fácil e gera conflitos.

                 A escritora J.K. Rowling foi questionada ao satirizar o termo: pessoas que menstruam, porém essa nova definição causa desconforto, afinal há elementos que são do mundo feminino que devem ser tratados com relevância, coisas como TPM, licença maternidade, horário de amamentação, não são compartilhadas por opção, merecem atenção em separado.  O ser humano vai além de reduções sexuais, poucos substituiriam: minha mãe foi uma grande mulher, por minha mãe foi uma grande pessoa com vagina!! O livro mulheres apaixonadas (D.H. Lawrence) viraria pessoas com vagina apaixonadas; A mulher de 30 anos (Balzac) viraria a pessoa com vagina de 30 anos!! Lembremos que o termo também já possui o equivalente: homens com pênis! E assim caminha a humanidade, ou, logo, logo teremos que dizer: e assim caminham as pessoas que têm cu.

terça-feira, 3 de novembro de 2020

A Morte da Coerência: Parcialismo Jornalístico

 


                A coerência é algo de suma importância em um texto, pensemos em um cego que conhece a própria casa, sabe onde fica a cozinha, sabe que existe uma mesa e a distância entre essa e a geladeira, sabe que na sala há sofá e no banheiro uma pia. Esse personagem então chega à casa de um amigo, o amigo lhe diz que estão na cozinha e de repente nosso personagem cego tateia um sofá, e quando eles vão até a sala, nosso personagem tateia uma pia! Logo há uma incoerência, em textos também é comum incoerências, sobretudo entre o título e a matéria, porém não raro elas são propositais, sobretudo quando analisamos os jornais atuais em relação a políticos como Trump ou Bolsonaro.

                Usarei uma notícia do UOL que chamou a atenção e virou motivo de chacota em algumas postagens, lembrando que tal matéria repetiu-se, de forma semelhante, em outros jornais da grande mídia:







               Interessante notar que em Oklahoma no dia 05 de julho, tivemos protestos do BLM, e foram 97 casos nesse dia e depois em 12 do mesmo mês 225!! Porém a incoerência fica mais nítida no próprio decorrer da matéria há uma opinião do diretor de saúde de Tulsa, onde ocorreu o comício de Trump, e o próprio sugere que “pode” ter relação com “os eventos” das últimas semanas, sendo que também houve outro evento na cidade o juneteenth em Tulsa em ambiente aberto e com várias pessoas.  A afirmação do título entra em contraste com a matéria e até mesmo com matérias anteriores, ou o vírus chinês possui uma tendência de ser seletivo em eventos.

                Lembremos que há uma corrida eleitoral no EUA, tais notícias tentem a criar um impacto no público, buscando criticar alguém, mesmo que para isso haja o sacrifício da coerência. Os jornais, não só no Brasil, ultimamente, estão a colocar pias na sala.


terça-feira, 27 de outubro de 2020

PIX: Abreviando as Siglas




O Banco Central, por meio da Resolução BCB Nº 1, de 12 de agosto de 2020, instituiu o PIX que é uma forma de pagamento instantâneo que visa a substituir TED, DOC, P2P, B2C, etc. Sim, quanta sigla, a vantagem é que o PIX também diminuirá o número de siglas!! As siglas são importantes para a comunicação, porém tornam a mensagem mais seletiva. No mundo digital as siglas são muito usadas, não raro ajudam a eliminar barreiras de pronuncia e ajudam a memorizar algo complexo. 

 O PIX tende a ser um integrante do SBP (mais uma!!!), ou seja, Sistema Brasileiro de Pagamento, e será utilizado para compras em depósito, transferências, pagamentos etc. O interessante, no caso da linguagem, é a escolha do nome PIX. Seria uma sigla, um neologismo, uma abreviação? Não é uma sigla, o Banco Central (BC!!!) buscou um termo que remete a tecnologia, daí PIXEL. 

A Abreviação vocabular é um processo de formação de palavras, não confundir com abreviatura, onde representamos uma palavra com as letras que sugerem essa palavra, exemplo de abreviatura: Dr. (abreviatura de doutor), etc (abreviatura de et coetera do latim “e as demais coisas); as siglas aproximam-se muito da abreviatura, pois as siglas, geralmente, são formadas com as iniciais das palavras ONU, BC etc. A abreviação, por sua vez, é a redução de uma palavra, há vários exemplos na língua: moto (motocicleta), quilo (quilograma), rebu (rebuliço) e agora Pix (PIXEL)! O interessante é que há uma tendência de as abreviações vocabulares substituírem a palavra reduzida e nesse caso a abreviação tende a substituir várias siglas.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Cruz e Sousa: Perante a Morte

 


A ciência e a metafísica encontram-se, pois, na intuição”

                                               (Henri Bergson) 

            Nessa primeira metade do século XXI temos mais poetas que poesia, temos mais artistas que arte, duas forças atuaram: a cultura de massa e as transgressões que os artistas buscaram, a cultura de massa deu status de artista para pessoas venais e os transgressores foram artistas venais definindo o estado da arte. Outra força já toma forma, onde se valoriza mais os predicados do ser que os predicados da obra. Assim a arte parece se afastar de sua epistemologia, a arte se afasta e permanece, pois o paradoxo a faz sorrir, não teme mais antíteses nem hipérboles.

             O dualismo entre objetivismo e subjetivismo é constante em nossa história literária, o racionalismo clássico e o cristianismo medieval, a ciência e a metafísica. O artista, sobretudo o poeta, capta os elementos e os amplia, criando oposições, criando integrações, criando retornos a elementos enraizados, em grande parte, na cultura ocidental. A escola simbolista, fins do séc. XIX e início do séc.XX, injeta uma resposta, uma oposição ao espírito científico, uma vacina ao positivo, materialista, mecânico ou determinista, com seus esquemas, presos a casualidade e longe das essências, tal qual um doce que se torna amargo, porque esqueceu que fora açúcar, em cárcere com suas resposta para a vida e não sobre a vida.

            A seguir, uma análise de um poema de Cruz e Sousa (1861-1898), poeta que representa a escola simbolista, nosso maior simbolista, poeta que soube conjugar elementos parnasianos em uma obra de obsessão, dor, revolta, religiosidade, talvez um suspiro do barroco, um Gregório de Matos mais pudico, com procedimento estilístico e tratamento de tema, que tornam, sem dúvida, um dos melhores poetas simbolista do mundo. Segundo Sérgio Alves Peixoto:

Dentro do Simbolismo brasileiro, Cruz e Sousa agigantou-se como uma espécie de bandeirante místico que, em meio à famosa floresta de símbolos de Baudelaire, procurou, desesperadamente, na aproximação com o espiritual e como o Absoluto, as grandes verdades humanas e divinas (Peixoto 1999: 249).

            O texto escolhido de Cruz e Sousa: Perante a Morte, consta entre os últimos sonetos do autor, como o nome já sugere, trata-se de um poema sobre o embate final, o embate que a vida adia. Segue o poema:

 

Perante a Morte

 

Perante a Morte empalidece e treme,

Treme perante a Morte, empalidece.

Coroa-te de lágrimas, esquece

O Mal cruel que nos abismos geme.

 

Ah! Longe o Inferno que flameja e freme,

Longe a Paixão que só no horror floresce...

A alma precisa de silêncio e prece,

Pois na prece e silêncio nada teme.

 

Silêncio e prece no fatal segredo,

Perante o pasmo do sombrio medo

Da morte e os seus aspectos reverentes...

 

Silêncio para o desespero insano,

O furor gigantesco e sobre-humano,

A dor sinistra de ranger os dentes.

            Quanto à estrutura, temos um poema decassílabo com rimas intercaladas, a forma é de soneto e as rimas estão dispostas em abba abba ccd eed. (1) Lembremos que na estrutura lógica dos sonetos, nos quartetos temos a apresentação do tema, no primeiro terceto a elevação do assunto, ou resumo, e no final a conclusão, chave de ouro.

            A preposição perante que inicia o poema indica uma relação de lugar (em frente à), a Morte é personificada, elevada, em uma tomada da consciência de sua existência, trazendo uma imersão para o “eu profundo”, abrindo o espaço para uma realidade mórbida. Esse primeiro verso une-se ao segundo, em uma insistência, uma referência a constante dor da condição humana, que percebemos pelo quiasmo: 

Perante a Morte empalidece e treme,

Treme perante a Morte, empalidece. 

Ou 

Empalidece e treme

Treme e empalidece 

            Os próximos versos do quarteto continuam, criando uma gradação no corpo: empalidece, treme, chora (lágrimas); no final o poeta sugere o esquecimento, personifica o Mal, mas o revela a gemer nos abismo. O próximo quarteto continua a idéia de distanciar (abismos geme) além disso, a união dos dois quartetos cria uma gradação: Morte < Mal< Inferno< Paixão. O primeiro verso do segundo quarteto também possui uma aliteração, que nos sugere uma musicalidade, algo também típico da escola:

“Ah! longe o InFERno que FLAmeja e FREme,”

                A solução, ou dualismo, aparece nos dois últimos versos do segundo quarteto, onde aparece o segundo quiasmo:

A alma precisa de silêncio e prece,

Pois na prece e silêncio nada teme.

Ou

Silêncio e prece

Prece e silêncio

            Esse segundo quiasmo tende a resolver o primeiro quiasmo: empalidece e treme – silêncio e prece. O primeiro terceto retoma o termo silencia e prece, uma sugestão da trindade? Talvez?  Nesse primeiro terceto inicia a elevação do assunto (1) em que há um suporte religioso dado pela prece: silêncio e prece no fatal segredo, ou seja, como enfrentar o “sombrio medo da morte”, como se comportar “perante o pasmo”, termina esse primeiro terceto com uma reticência depois da palavra reverente, aprofundando do eu - lírico para o eu do leitor, para assim criar um estado de poesia no leitor.

            No último terceto, percebemos que ele abre apenas com a palavra silencia, houve a ausência da prece, aqui se percebe que há dois estados, de um lado o religioso e de outro o não-religioso, onde no religioso temos uma esperança, como sugere no primeiro terceto e no segundo o desespero insano, comparemos:                               

                                   1.º terceto: Silêncio e prece no fatal segredo, (aspectos reverentes)

                                   2.º terceto: Silêncio para o desespero insano, (ranger de dentes)

            A religião com seus símbolos (aspecto reverente) trazendo conforto, sugerindo um segredo que possui uma linguagem humana e a ausência da prece, trazendo uma dor sinistra, uma dor e uma revolta, argumentos tão típicos nesse poeta brasileiro, tão esquecido e tão necessário para que o número de poesia seja maios que o número de poetas.                       

Referências:

AMORA, Antonio Soares: teoria da literatura 9.ª ed. São Paulo: Clássico Científico, 1971

BERGSON, Henri: Introdução à Metafísica  col. Os Pensadores vol XXXVIII São Paulo: Abril Cultural, 1974.

BOSI, Alfredo: História Concisa da Literatura Brasileira São Paulo: Cultrix, 1975

PEIXOTO, Sérgio Alves. A consciência criadora na poesia brasileira: do Barroco ao Simbolismo. São Paulo: Annablume, 1999.

SOUSA, João da Cruz e: poesias completas, broqueis, faróis, últimos sonetos Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.

 


terça-feira, 13 de outubro de 2020

De Pandemia para Sindemia: Mudam-se os Nomes, Permanecem os Radicais.


 

No dia 11 de março de 2020 a OMS declarou que a doença causada por um vírus chinês (Sars-Covid-2) tratava-se de uma pandemia, o nome faz uma referência a sua disseminação geográfica e cria um alerta para as nações. Esse nome, pandemia, também usa o famoso radical nominal grego {dem-, demo-}, que indica população, grupo, povo, daí seu uso na terminologia médica. Também encontramos em termos como endemia e epidemia, onde o primeiro concentra-se em uma determinada população, por razões geográficas ou culturais; já o segundo, epidemia, trata-se de uma região e finalmente pandemia quando há uma ampliação geográfica, daí o prefixo {pan-} que quer dizer inteiro, completo; de fato, o vírus surge na China e se propaga para o mundo inteiro, o que justifica o nome pandemia, porém, recentemente um neologismo começa a tomar forma, ou seja, sindemia.

                O nome surge em 1990, cunhado pelo antropólogo e médico norte-americano Merril Singer, para se referir a interação entre doenças que causam um dano maior que a soma dessas doenças, um exemplo são os usuários de drogas injetáveis, que possuem alguma doença preexistente e a droga acaba por ampliar o dano; no caso do vírus chinês, há a comorbidade (o diabetes, a obesidade e o câncer) que amplia seus danos, sobretudo em pessoas menos assistidas.  A mudança conceitual cria uma mudança semântica importante, pois não se trata apenas de cuidar dos doentes e da propagação do vírus, mas também de contribuir para que as comunidades menos assistidas não sejam tão vulneráveis, sobretudo socialmente.

                Temos assim, com o conceito de sindemia, um contraponto ao grupo que dizia que a economia a gente vê depois.

               (Ricardo Gomes Pereira)

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

O Radical e a Perseguição: Cristofobia, Misocristia...



Em um recente discurso na ONU, o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, usou o termo cristofobia, referindo-se à perseguição aos cristãos em vários países; o termo é pouco usado, mas revela algo que ocorre atualmente e historicamente com o nome de Cristo.

            Os substantivos nomeiam os seres reais, imaginários, objetos e sentimentos humanos, para isso, eles possuem um elemento em sua estrutura, nomeado radical, esse elemento sofre poucas alterações e contribui para uma economia lingüística, contribui para aumentar o léxico, contribui para o entendimento de um texto, por exemplo, se alguém ler a palavra chamusco, pode até não saber que se trata de um odor de chama, mas conseguirá, relacionar com a palavra chama (sem relacionar com o verbo chamar), por causa do radical e dos afixos (elementos que colocamos junto ao radical).

            As palavras com o tempo recebem muitos afixos, isso contribui para sua atualidade, sabemos também que o uso das palavras é como um espelho autoritário que reflete o espírito de uma época (zeitgeist), reflete a cultura, reflete o interior dos falantes. Isso gera uma busca em mudar termos, há pouco tempo, um termo como macho, tinha uma carga positiva, porém com as criticas ao machismo, perdeu essa carga positiva.

            Vejamos o que ocorre com o radical de Cristo {Crist-}; desde o início do cristianismo existe uma perseguição, o martírio dos apóstolos, a perseguição aos cristão em Roma (CESARÉIA: 2019), governos contra o cristianismo, lutas religiosas, proibição de culto, etc. Atualmente, esses fenômenos continuam e os termos vão se acumulando: anticristianismo, anticristão, cristofobia, cristianofobia, misocristia, guerra cristera, etc. Acumulam-se sufixos ao radical, porém esses sufixos refletem uma perseguição aos que acreditam e seguem os preceitos de Cristo. Assim temos por um lado, palavras que são atenuadas, por outro percebemos que há uma certa denúncia sobre o espírito da época e o uso das palavras, ou a negação de certas palavras, revelando a aceitação do poder das palavras.

(Ricardo Gomes Pereira)

 

Referências

 

CESARÉIA, Eusébio: História Eclesiástica trad.: Wolfgang Fischer São Paulo: Fonte Editorial, 2019.

 

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Globalismo e Globalização: a Guerra dos Sufixos

 


A morfologia cuida da classificação, estrutura e significados da palavra, quando isoladas individualmente, para isso é importante o conceito de radical, que é a parte da palavra que traz sua significação lexical, por exemplo, ao ouvir ou ler a palavra fazendola, a pessoa pode não perceber o diminutivo, mas conseguirá perceber que se refere, ou tem relação, com a palavra fazenda. O radical é importante, porém há também os elementos colocados depois do radical, os sufixos, que podem mudar a palavra, é o que temos em globalismo e globalização, ambas possuem o mesmo radical {glob-}, mas são coisas distintas e, ultimamente, confundem seus significados.

            Globalismo e globalização possuem o mesmo radical, mas sufixos nominais distintos, esses sufixos indicam em globalismo {-ismo}: doutrina, sistema político, ciência; já em globalização temos o sufixo {-ção}: ação, estado ou qualidade. A diferença fica evidente quando usamos alguns determinantes: globalização política (para globalismo) e globalização econômica (para globalização); a globalização econômica refere-se a uma ação dos Estados em busca de um livre comércio, o problema para sua realização são os protecionismos de mercado; já a globalização política, por sua vez, refere-se a uma ampliação de determinada política social, cultural, legislativa, ou seja, um coletivismo, controlado por burocratas, ou agentes, acima das escolhas democráticas locais.

            Nota-se que o sufixo {-ismo}, realmente, possui uma importância no termo, pois o globalismo possui um caráter de doutrina, cuja premissa é: um mundo com problemas complexos (saúde, meio ambiente, comércio) exige um poder centralizado para decisões em nível mundial. Essa busca de um governo global convergente é um resultado, segundo Olavo de Carvalho, de três fatores:

 

 a) Alta complexidade das administrações públicas e os suportes tecno-sociais, fornecendo instrumentos de controle social, que não dependem de debate político;

b) meios de comunicação concentrados em pequenos grupos que realizam engenharia comportamental e fomentam o controle político com apologia a determinado tipo de pensamento e censura aos críticos;

c) Elite financeira a patrocinar os “órfãos de uma causa social”, com o fim da URSS, favorecendo militâncias locais e assim fomentando uma máquina de pressão política e intimidação. (CARVALHO: 2014 p.165).

 

            Assim é perceptível que temos, de um lado, uma ação econômica e comercial (globalização) e de outro uma centralização política em um grupo supranacional doutrinário; não obstante, ainda há certa confusão em jornais e membros da mídia abastada, essas confusões deixam claro que podemos estar diante do fator (b) acima descrito, ou de que na guerra dos sufixos, a desinformação é uma arma bem conveniente.

           

REFERÊNCIAS

CARVALHO, Olavo de:  o mínimo que você precisa saber para não ser um idiota  org. Felipe Moura Brasil. – 10ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2014.

 

POLLEIT, Thorsten:  A diferença básica entre globalismo e globalização econômica: um é o oposto do outro in: MISES BRASIL/Artigos. disponível em: https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2639#:~:text=O%20globalismo%20%C3%A9%20uma%20pol%C3%ADtica,de%20interven%C3%A7%C3%B5es%20e%20decretos%20autorit%C3%A1rios.  Acesso em 29/09/2020.

 


quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Nintendo Switch e os Nomes Proibidos

 


Há muitas barreiras no mundo, mas não para o politicamente correto, dessa vez foi o mundo dos games. Em jogos é comum usar um nickname ( pseudônimo, ou alcunha ), isso tende a realçar a experiência do jogador e pode gerar "brincadeiras", pois bem, a nova atualização do nintendo switch bane algumas palavras como KKK ( referência a Ku Klux Klan grupo terrorista do séc XIX que perseguia negros), Nazi ( referência ao Partido Nacional Socialista dos trabalhadores alemães), de fato, há razões históricas para não brincar com  tais nomes, porém há nomes atuais também, por exemplo, acab ( uma sigla, usada pelo movimento black live Matter que significa todos os policiais são bastardos - all cops are bstard), até aí, tudo bem,  porém, esses banimento podem se adensar,  uma palavra como covid, também foi banida e  a Riot Games baniu a palavra corona no jogo  league of legends!!!

                Essa última prejudicou o jogador do league of legends, incrível, mas um jogador de nome João Corona não conseguiu colocar seu nome, afinal é uma das palavras banidas, apesar de a palavra corona já existir em línguas românicas, chegamos à estação da gramática histórica! O jogador Corona reclamou, mas não foi atendido. A palavra é do grego e veio até nós pelo latim: corōna,æ; além de estar no sobrenome do João, essa palavra também é nome de uma cidade da Califórnia e existe até uma Santa com esse nome na Igreja Católica Romana: Santa Corona ( martirizada no séc. II).

                Razões históricas são plausíveis, porém há  o cuidado com palavras que parecem contemporâneas, mas possuem  raízes em outras línguas, linguística comparada, por enquanto é torcer para que as mudanças dos nomes de usuários fique restrita a um João Crown.

(Ricardo Gomes Pereira)

 

Fontes:

 

KOTAKU : Nintendo Switch Bans Nicknames Like ‘ACAB’, ‘Nazi’, And ‘Covid’ In Latest Update

https://kotaku.com/nintendo-switch-bans-nicknames-like-acab-nazi-and-cov-1845064719 acesso em 23/092020

 

KOTAKU: Riot Tries To Force League Of Legends Player Named Corona To Change His Username https://kotaku.com/riot-tries-to-force-league-of-legends-player-named-coro-1842889237 acesso em 22/09/2020


sábado, 19 de setembro de 2020

Linguagem Neutra e Ideologia Ativa

 


                    A questão de que a linguagem contém elementos de classe social, ou opressão patriarcal, ou raça, ou gênero, normalmente, causa discussões e, não raro, surgem algumas soluções equivocadas. A proposta de linguagem neutra tenta resolver parte desse problema, mexendo, sobretudo, em substantivos, adjetivos e pronomes, que são as classes de palavras que nomeiam ou revelam acidentes dos seres em geral, as questões sintáticas não levarei em consideração aqui.

                O nome linguagem neutra ou linguagem neutra de gênero, ganha adeptos e até escolas chegam a usar, o que revela a necessidade de ouvir e entender seus princípios, entender os questionamentos sobre linguagem não binária. Sabemos que a gramática normativa trata das normas de uma língua, já a linguagem pode ter variações, daí usarmos os termos linguagem formal e informal. As soluções que surgem, ou hipóteses, não raro possuem uma ideologia enraizada e precisam exercer uma pressão social nos falantes, para se adaptarem a certas regras criadas, assim apesar de buscar neutralidade, há opção ideológica e ignoram que o preconceito não é algo restrito a palavra em si, e sim as intenções do falante, uma pessoa preconceituosa não deixará de o ser, apenas por usar um sufixo diferente.

                Já na origem de nossa Língua, o latim, havia nomes neutros, inclusive havia declinações para masculino e feminino, na primeira declinação do latim predominam nomes femininos, mas também há alguns masculinos, como nauta,ae ; já na segunda declinação, predominam nomes masculinos. Lembremos de que no latim não havia artigo, a Língua Portuguesa substitui as declinações e usa o suporte dos artigos, quando se mexe em uma Língua, devem-se levar em conta muitos fatores, que vão além do ele, ela e elu. Além disso, a língua possui uma unidade na variedade, como expressa Celso Cunha (CUNHA: 1981 p.73) onde a linguagem expressa o indivíduo por seu caráter criativo, mas expressa também o ambiente social e nacional, por sua repetição e aceitação.

                A Linguagem neutra de gênero procura assim criar uma taxonomia para nomes, que serão repetidos e ensinados nas escolas, logo teremos meninos, meninas e menines, a opção pelo sufixo {-e} como fator de neutralidade pode ser funcional em algumas palavras, porém não é uma regra fixa de que os sufixos {-a} e {-o} indicam somente masculino e feminino, os substantivos possuem um conjunto de uniformes que são comuns de dois gêneros, sobrecomuns e epicenos. Vejamos os comuns de dois gêneros, o que faz a sua mudança é o artigo: o jovem, a jovem, logo, teríamos "jovene?" os sobrecomuns possuem um só gênero, a vítima, a criança, apesar da terminação em {-a}; finalmente os epicenos, nomes de animais, possuem uma só forma: sardinha, tatu, crocodilo, etc. Daí podemos entender como a Língua Portuguesa usa os artigos, para evitar as declinações do latim, logo não adianta mudar o sufixo e não mexer no artigo, ou simplesmente usar um artigo {ê} ou {ês}: Vi ê menine com ês colegues, ressaltemos que os artigos também indeterminam os seres, não apenas indicam gênero.

                No caso dos adjetivos também segue o mesmo bonde, muitos são comuns de dois gêneros: feliz, triste, alerta, estudante, etc. No caso dos pronomes há um aumento substancial com a terminação em {-u} ou {-e} delu, elu, aquelu, mesme, sue, pouque, algumes, nenhumes, etc. Essas variações não são muito funcionais e ampliam consideravelmente o campo classificatório, gerando eufonia, cacofonia e confusão, o que pode ir de encontro ao que se deseja. M. Bakhtin (BAKHTIN: 2010 p294) dividia as palavras em três aspectos: como palavra da língua neutra, como palavra alheia e como minha palavra, logo é o papel da experiência discursiva individual que gera o preconceito e não a palavra em si, isolada, ou seja, mudar a forma do discurso, não significa mudar o discurso.

                Resumindo: I- A língua possui neutralidade, a intenção dos interlocutores que gera o preconceito; II - a terminação não é o fator que caracteriza o gênero e sim o artigo; III - gênero gramatical é diferente de gênero musical ou gênero literário em que há vários, ampliar pode gerar mais confusão e cacofonia; IV - dificultará a linguagem e a comunicação com mais flexões e particípios: alune, aluninhes ou  O aluno estava cansado, A aluna estava cansada e alune estava cansade e V – a língua possui saídas em seu próprio sistema para retirar esse caráter binário.

                Sobre o último ponto, a melhor opção, haverá o uso da própria gramática, o entendimento da metalinguagem (infelizmente houve um paulatino afastamento do estudo gramatical nas escolas) assim haveria como deixar o uso menos “binário”, com menos marcas de gênero! E.g.:

 

Os alunos conversaram com o diretor da escola. 

ou

Discentes conversaram com a autoridade escolar.

 

                Vale ressaltar que as questões como eufonia serão deixadas para as próximas gerações e que o uso dessa linguagem também necessita da aprovação do interlocutor, ou seja, como a pessoa quer ser tratada, o que não retira do enunciador o suporte ideológico, os indivíduos adequariam seus discursos, mas continuariam ou aumentariam seu preconceito, sobre essa questão do discurso social ressalta Fiorin: Seu dizer é a reprodução inconsciente do dizer e seu grupo social. Não é livre para dizer, mas coagido a dizer o que seu grupo diz (FIORIN: 2000 p.42). Essa busca de harmonia comunicativa é algo plausível, porém há o cuidado em exigir neutralidade apenas para se adequar aos próprios princípios ideológicos, ou “identitários”, quem manipula as palavras quer manipular o mundo.

 

(Ricardo Gomes Pereira)

 

Referências Bibliográficas:

 

BAKHTIN, Mikhail: Estética da criação verbal trad. Paulo Bezerra. 5.ª ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2010.

CUNHA, Celso: Língua Portuguesa e realidade brasileira. Col. Temas de todos os tempos vol.13 8ª ed. Rio de Janeiro ed. Tempo Brasileiro, 1981.

FARACO, Carlos Emílio & MOURA, Francisco Marto de: Gramática 3.ª ed. São Paulo Ed. Ática: 1988. 

LAU, Diego Hélinton: O USO DA LINGUAGEM NEUTRA COMO VISIBILIDADE E INCLUSÃO PARA PESSOAS TRANS NÃO-BINÁRIAS NA LÍNGUA PORTUGUESA: A VOZ “DEL@S” OU “DELXS”? NÃO! A VOZ “DELUS”! Simpósio Internacional em Educação Sexual, 2017 Universidade Federal do Paraná.  Disponível em  http://www.sies.uem.br/trabalhos/2017/3112.pdf acesso em 19/09/2020.

FIORIN, José Luiz: Linguagem e Ideologia  7.ª ed. São Paulo Ed. Ática: 2000

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Pseudônimo e Anonimato "Sleeping" Arcadismo

 



Recentemente, um grupo que tem por objetivo assediar empresas causou um constrangimento à rede social twitter, afinal esse grupo intitulado sleeping giants, acusa empresas e pessoas e tenta convencer outras empresas a não fazerem anúncios em suas redes.  O  sleeping giants usa do anonimato, porém suas críticas beiram a difamação. O pedido de identificar o dono da conta trouxe o dilema sobre a privacidade, afinal, há a questão do pseudônimo, muito comum nessa rede social, o que criaria um precedente jurídico para outras contas, afinal, a defesa relata que não há crime. A constituição de 88 proíbe o anonimato, porém não o pseudônimo; em nossa literatura, tivemos uma época em que o pseudônimo era regra, foi uma característica de uma escola literária intitulada de Arcadismo, mesmo assim houve um autor que usou do anonimato para criticar o então governador. Conhecer um pouco do Arcadismo, talvez nos ajude a perceber esse meio de ação:

                O nome, arcadismo, é uma referência à Arcádia grega, região do Olímpo, habitada por pastores e controlada pelo  deus Pan, esse poetas tinham em comum uma poesia voltada para a natureza, uma poesia bucólica e pastoril, época em que a cultura dos jesuítas começa a ceder lugar a influência do movimento iluminista francês. Os poetas usavam pseudônimos, como uma espécie de fingimento poético, Glauceste Satúrnino e Dirceu são pseudônimos dos poetas Claudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga. Esse último também escreveu poemas satíricos, que circularam em Vila Rica, um pouco antes da Inconfidência Mineira, Tomás Antônio Gonzaga também escreveu um texto de censura ao então governador  de Minas Gerais, Luís da Cunha Menezes, o poeta usa do anonimato , onde Critilo, no Chile, correponde-se com Doroteu, em Madri; retirando a referência direta ao Brasil; nesse caso, o uso do anonimato se faz necessário, afinal como sabemos a Inconfidência acabou deixando os dentes e tirando a vida de Tiradentes! O texto é escrito em versos decassílabos, vejamos um exemplo do poeta:

Ah! Tu, piedade santa, agora, agora,
Os teus ouvidos tapa e fecha os olhos,
Ou foge de uma terra, aonde um Nero,
Aonde os seus sequazes, cada dia
Para o pranto te dão motivos novos.
( GONZAGA:2002)

 

                A diferença nesse uso do anonimato ocorre e é notória, pois no poeta árcade, temos um receio, um contexto político de poderes grandes, há uma denúncias, apelidos, sátiras, esse texto será semente que culminará na Incofidência, já no caso do sleeping giants, percebe-se uma perseguição pessoal, ameaçam empresas, ameaçam pessoas, ameaçam consumidores, usam da difamação, usam do sofisma: propaganda em programa é diferente de patrocínio de programa. Não temos uma ausência de fanfarrões Minésios, alcunha dada ao governador de Minas pelo poeta árcade, realmente temos alguns fanfarrões do dinheiro público, talvez o que não temos mais são poetas capazes de fazer a sua denúncia com arte e não picuinhas.

(Ricardo Gomes Pereira)

Referências:

GONZAGA, Tomáz Antônio: Marília de Dirceu e Cartas Chilenas – São Paulo: Martim Claret, 2002.

NICOLA, José de: Literatura Brasileira – São Paulo: Ed. Scipione, 1990.


segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Hino Nacional em Prosa e Direto


 

            O Hino Nacional Brasileiro é sem dúvida um belo exemplo estético, com seu sabor culto, composto por Osório Duque Estrada, poeta parnasiano, movimento que prezava pela forma e linguagem rebuscada, e com música de Francisco Manuel da Silva, música que  veio bem antes da letra.  A letra carrega a influência da poesia da época, entre romântico e parnasiano, fugindo do lusitanismo, além disso, possui um apego pelo que chamamos de hipérbato, ou seja,  uma inversão da ordem sintática direta, a ordem direta, que é a mais comum, consiste em Sujeito + Verbo + Predicado, porém podemos mudá-la, não se trata de algo fixo, essa mudança quando não afeta muito o entendimento é chamada de hipérbato, se for exagerada e afetar o entendimento, aí teremos a sínquise.

                A seguir há o hino nacional em ordem direta e também em prosa (parágrafos em vez de versos), o que facilitará o entendimento de certos trechos do hino.

                                                                           I

                As margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heróico e nesse instante, no céu da pátria,  o sol da liberdade brilhou  em raios fúlgidos.  Se conseguimos conquistar com braço forte o penhor dessa igualdade em teu seio, ó liberdade, o nosso peito desafia  a própria morte. Pátria amada, idolatrada, salve! Salve!

                Brasil, se em teu formoso céu risonho e límpido resplandece a imagem do cruzeiro, desce a terra um sonho intenso, um raio vívido de amor e de esperança. Gigante pela própria natureza, és belo, és forte, impávido colosso e o teu futuro espelha essa grandeza. Terra adorada, entre mil outras, és tu Brasil, ó pátria amada! És mãe gentil dos filhos deste solo, pátria amada Brasil.

                                                                             II

                Ó Brasil, florão da América, eternamente deitado em berço esplêndido,  iluminado ao sol do novo mundo, fulguras  ao som do mar e à luz do céu profundo. Teus lindos campos risonhos têm mais flores do que a terra mais garrida; “Nossos bosques tem mais vida”, “nossa vida” no teu seio “mais amores” Ó pátria amada, idolatrada,  salve! Salve!

                Brasil, o lábaro estrelado que ostentas seja símbolo de amor eterno e o verde-ouro desta flâmula diga: Paz no futuro e glória no  passado. Mas, se ergues da justiça a clava forte, verás que um filho teu  não foge à luta, nem a própria morte teme, quem te adora. Terra adorada. Entre mil outras és tu Brasil, ó pátria amada! És mãe gentil dos filhos deste solo, pátria amada, Brasil.

 (Ricardo Gomes Pereira)

sábado, 29 de agosto de 2020

Qual o Coletivo de Zumbis?

 

A tradução de jogos eletrônicos nem sempre é fácil, há o cuidado de ser preciso e não cair no estrangeirismo, além disso, podemos encontrar vários problemas relacionados ao léxico, um bom exemplo é o jogo zumbi tsunami onde o próprio título traz dois estrangeirismo, o primeiro (zumbi) é um africanismo  das línguas nigero-congolesas “Nzumbi” que significa duende, cadáver, já a palavra tsunami vem do japonês  onde {tsu-} porto e {-nami} onda. O que nos importa é a palavra zumbi, que entrou em nosso léxico e é bem explorada pela influência que exerce em filmes, seriados e jogos.

                O jogo zombie tsunami possui estágios ou desafios, em uma das traduções está o termo horda de zumbis, onde o coletivo de zumbi virou horda. Coletivo é o nome que damos a uma das divisões dos substantivos, ou seja, quando o substantivo se refere a uma coleção de seres da mesma espécie, os coletivos se dividem em específicos, aplicam-se a uma só espécie: matilha, boiada, arquipélago, etc; indeterminado, aplicam-se a diversas espécies, bando de aves, bando de crianças, etc; e numéricos, quando exprimem número exato: par, centena, dezena, etc.  Muitos coletivos usamos sem notar como álbum, atlas, alfabeto, entretanto é difícil escolhe coletivos para palavras que historicamente não possuem.

                 O coletivo específico de cadáver é mortualha, que figurativamente também pode se referir a pessoa sem vida; porém os zumbis são cadáveres com vida! Daí a opção pelo coletivo indeterminado horda, que faz parte de um bom número de coletivos que se referem a multidões de maltrapilhos e desordeiros, por exemplo, caterva, farândola, malta, súcia e corja.  Sem dúvida a palavra horda não ficou mal, agora é só fazer essa horda de zumbis, devorando cérebros!!

(Ricardo Gomes)

Referências:

BECHARA, Evanildo: Moderna gramática portuguesa. 37. Ed.. Rio de Janeiro: Nova Cultural, 2009.

CEGALLA, Domingos Paschoal: Novíssima gramática da Língua Portuguesa.   34. Ed. São Paulo: Companhia Nacional, 1991.

COUTINHO, Ismael de Lima: Pontos de gramática histórica. 7. Ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1976.