terça-feira, 16 de agosto de 2022

Novo Ensino Médio: Literatura na Guilhotina

 

O NOVO ENSINO MÉDIO: LITERATURA NA GUILHOTINA

 

              A arte nos mostra o que o ser humano é capaz de realizar com nossos sentidos, o sentir estético ou poético é algo que absorve nosso ser, retira-nos de nossa mediocridade e nos transcende, tal fruição estética temos na música, na pintura e no cinema, sem muito esforço, inclusive na música, podemos sentir a presença artística, mesmo ausente um estudo muito apurado, por isso os jesuítas usaram o teatro para converter os gentios, assim como a música para primeiro cativá-los, pois são formas de apresentar o belo, sem necessidade de preparações ou conceitos.

              A Literatura perde muito nesse quesito, diferente do teatro e do cinema, ela exige, um domínio vocabular invulgar e um domínio do ato de ler, ou seja, realizar a decodificação e compreensão de forma, não célere, porém automática, para assim entrar na história.  Na Literatura venal, temos a opção de simplificar textos, abusar de imagens e recusar o metalinguístico e descrições poéticas, a história fica assim centrada no enredo rápido, dando ao leitor uma sensação de domínio, sem os desafios; há um pacto entre autor e leitor de que não querem a busca de um ideal estético na forma ou uma estética que vá além do senso comum, enfim a doxa se sobrepondo à episteme.

              A Literatura tem como dever de nos retirar da doxa, conduzir-nos à episteme, entretanto não podemos culpá-la quando tal não ocorre, pois como dito acima, ela necessita de bases sólidas, ela necessita de leitores, de ouvintes, de apreciadores dotados de sensibilidade e capacidade de analisar o objeto artístico em questão! Caso contrário, teremos um pescador que não sai da margem. Não podemos reclamar da paisagem quando as janelas estão opacas, não podemos reclamar de uma comida quando não distinguimos sal de orégano; e não raro as janelas estão fechadas e temos que abri-las, sozinhos, não, precisaremos de mãos. A escola tem assim o dever de fornecer instrumentos, oferecer aquelas mãos (manus manum lavat)  para abrir essas janelas, fornecer flanelas para limpar essas janelas, enfim, a escola fornece maneiras de distinguir sabores e reconhecer o sabor do sal; um enfim mais além: o discente deveria terminar o Ensino Médio capaz de entender e fruir esteticamente um texto literário, de preferência de nossa Literatura Brasileira, mas tal não ocorre, o que temos hoje, são jovens que não possuem apreço pela Literatura, consideram uma perda de tempo, não conhecem mais os personagens de nossa literatura, algo que não seria assustador, porém  a própria formação do professor, também apaga a literatura, sobretudo com o relativismo cultural.  

              Se observarmos que nos últimos anos, tivemos uma insistência no ensino da leitura e do letramento e, de repente, estamos diante de uma consequência que é o oposto daquilo que se pretendia? Não há nem janelas para limpar e ver as paisagens, pois não há passageiros nesse ônibus que chamamos de Literatura, perdemos assim o desiderato, já não há motivo para o percurso, perdemos assim o nosso diapasão cultural. Ninguém se interessa em distinguir mais os sabores, será algo para poucos diferenciar um soneto parnasiano de um soneto barroco. Tais mudanças não são novas. Os autores clássicos também sofreram tal abandono quando deixaram de ser exemplo , quando a escolástica abandona os clássicos latinos e gregos, por exemplo; a perda de tal referência prejudica a geração de discursos constituídos pelo exemplo dos  clássicos e a literatura perde-se não no experimentalismo, mas no anorexismo linguístico.

              A Literatura contribui para moldar nossa personalidade, abastece nosso senso moral, de justiça e nos convida a uma supra - realidade que nos retira de nossa mesquinhez, nos afasta da morte, nos convida a acompanhar destinos como Deuses de Olimpo. Participar de discursos interiores como psicanalistas de almas! Ela então tem um poder subjetivo, mas uma consequência objetiva, funciona tal qual um alimento, um óbolo, assim como o alimento fortifica o corpo para a ação do pensar, ela funciona como um alimento, não para o corpo e sim para o intelecto; as religiões, por exemplo, estão pautadas em Literatura, possuem seus mitos, suas histórias e enredos, vide o judaísmo e cristianismo que possuem seu apreço pela musicalidade da palavra, assim como  o alcorão, ou a beleza na escrita dos vedas. Quem bem percebeu essa força foi Nietzsche em seu Zaratustra.

              Essa presença da literatura justamente na religação do homem com Deus, essa importância, substância metafísica da Literatura tende a contribuir para o desenvolvimento da própria humanidade, basta vermos como se diferenciaram as cidades e os povos ao longo dos anos, oq ue cultivavam uma Literatura ficcioal ( não submissa aos temas perenes da teologia) e os que não a cultivaram, ou como o Império Romano consegue se solidificar de tal forma, usando de uma cultura mais elevada que a deles, não obstante conservando-a de uma forma tão distinta que nem parece que foi há mais de dois mil anos que sua Literatura nos deixou, apesar de ir se perdendo dentro de outra, para renascer dentro de outra? Se para o indivíduo há o ditado: plante uma árvore e escreva um livro, o que dizer para uma nação além de plante Escolas e forme leitores? Essa proposta de Ensino Médio que ora começa a prosperar, justamente o contrário parece almejar, retira a Literatura da escola, obnubila os Estudos de Literatura com suas escolas literárias, autores e livros obrigatório por um relativismo cego, em que qualquer texto escrito possui o mesmo valor estético e metafísico de obras que inspiraram gerações e criaram outros autores através da imitação de tais obras.

              Esse modelo de personalidade que a Literatura tem o poder de moldar não é algo restrito a um grupo particular de autores, não basta apenas ter um,  ou dois autores e assim considerar que trabalhou Literatura, como atualmente tentam fazer com sistema apostilados, em que aparece um texto do autor e cabe ao professor toda a contextualização, mas essa contextualização sem um preparo anterior, sem um sequência, sem um entendimento do zeitgeist da época fica algo nublado para o discente reconhecer o que está sendo dito, acompanhar o discurso com seus termos técnicos. A personalidade não se resume em nacionalismo, a Literatura tem uma influência no nacionalismo, algo que a  coloca em oposto a tendências de globalismo, apesar de existir uma parte que é compartilhada com todos, assim temos a personalidade nacional,  doméstica, interna na qual podemos citar autores como M. Bandeira, Oswald de Andrade, Guimaraens Rosa, Jorge Amado, José de Alencar; há uma personalidade externa, mais voltadas a problemas humanos e filosóficos perenes como Machado de Assis, Gustavo Corção, Carlos Drummond, Dalton Trevisan e enfim, a personalidade mista, como temos em Monteiro Lobato, Suassuna, Roberto Drummond, Graciliano Ramos etc. Essa personalidade que se perde, cria rupturas discursivas entra as gerações, que acabam no primeiro momento embriagadas pela quantidade de obras ao seu alcance e depois enjoados, como moscas que caíram em sopa.

              Boa parte dos futuros jovens que sairão do Ensino Médio, sobretudo na periferia, não serão capazes de citar autores brasileiros, pois estarão em um amálgama de textos, sem orientação, sem preparo e longe de saborear e distinguir os anseios estéticos de cada autor e como as personalidades literárias tentam nos influenciar; outro fator importante dessas personalidade para os discentes está na aproximação com os próprios transtornos que rondam a todos nós, reconhecer ali partes de nossas personalidade, há muitos CID 10 F 60 em nossa literatura; assim é útil ajudar o discente a analisar personagens ansiosos, histriônicos, dependentes, anancásticos etc.

              A  proposta do Novo Ensino Médio tem como pressuposto a escolha do itinerário pelo aluno, algo também chamado de protagonismo, assim o jovem escolhe um determinada assunto e desse assunto surge um itinerário formativo, no qual ele terá acesso às disciplinas do currículo que tenham relação com o assunto escolhido, assim se o jovem, não escolher nada que envolva Literatura ele não terá Literatura, apenas Língua Portuguesa, sendo que os texto de Literatura ficarão nessa disciplina obrigatório, mas não o estudo centrado sobre Literatura.

              O mesmo ocorre com outras disciplinas, por exemplo, Biologia, se o jovem não escolher um determinado itinerário que envolva Biologia, ele ficará sem a disciplina nos anos finais do Ensino Médio. O modelo sugere um protagonismo do aluno, mas primeiro lhe tira a possibilidade de voo, pois no fundamental II o discente não tem acesso a matérias como Física, Química, Literatura, Biologia, Sociologia etc.  O que esse aluno teve foi um pequeno rudimento, que desenvolveria no Ensino Médio e se fosse para o superior poderia limitar. Como assim protagonismo, se a pessoa não tem noção do que está a escolher? As disciplinas assim ficam reduzidas a funções utilitárias, mesmo quando Língua Portuguesa aparece como algo obrigatório, não se trata de um estudo gramatical, ou metódico da Língua Materna, e sim de uma continuidade na Linguística textual. Não há, outrossim, um empenho para que o indivíduo tenha uma potência intelectual, seja um polímata, pelo contrário, há uma tendência de nivelamento por baixo, uma tendência de relativismo raso, raso como um rio, um rio que não procura o mar, um rio que não pode amar.

              Esse itinerário formativo que o discente tem a oportunidade de escolher é a aposta de atração, como é o próprio aluno que escolhe, consideram que o aluno terá  um maior desejo de realizar, terá mais seriedade com as aulas, pois foi ele que decidiu, ou foi obrigado a decidir tal itinerário; o grande problema aqui  é a base para escolha, o discente não possui ainda uma base sólida para decidir sobre o que escolher, dentro da formação anterior, ou velho Ensino Médio, o discente conhecia um pouco de Química, Física, Literatura e assim era capaz de ter uma ideia, mesmo que aproximada, daquilo que iria estudar em uma universidade se fosse prosseguir com algum curso em que essas disciplinas estivessem. Ora, sem essa base, ele escolhe e as escolas que terão que se adequar, sendo que muitas vezes, as escolas fazem uma adequação com base no seu corpo docente e não nas escolhas dos alunos, ou, professores tentam convencer os discentes a escolherem este ou aquele itinerário, afinal o emprego do professor também depende dessas escolhas, ou então os discente buscam itinerários mais “tranquilos” ou que se apresentem sem muita cobrança; se eles não tem uma noção precisa de literatura, seu objeto, acabam no senso comum de que literatura se restringe a ler livros e mais livros com palavras inusitadas sobre pessoas ínclitas, ou minorias que merecem relevo, não por alguma obra em si, mas por pertencer a um grupo dito oprimido.

              O argumento do interesse tem pouca validade, e não precisamos ir muito longe; afinal se refletirmos sobre a escolha do itinerário, a simples escolha não o torna atrativo, o torna menos impositivo, o fato de escolher um prato em um cardápio fechado, não faz com que meu paladar seja obrigado a gostar! Ademais, imagine ofertar todo um cardápio para alguém que está acostumado apenas com o básico? Muitos jovens podem até se arrepender do itinerário escolhido e assim suportar o curso até o fim e receber um certificado. Não há de fato uma autonomia, pois o leque de escolhas não consegue contemplar os desejos de todos os discentes, aliás, muitos ainda não têm noção daquilo que irão querer no mercado de trabalho, por isso as disciplinas tanto ajudam. Vi muitos jovens que com o tempo começam a gostar de alguma matéria e se encontram nela.

              Quando a escola fornecia um pequeno curso de introdução à Literatura, ajudava na construção de nossa personalidade com as personalidades literárias de que falamos acima, essas funcionam como semas (literemas) literários, como diapasão para os futuros leitores em um universo comum: Capitu, Major Vidigal, Diadorim, Macabeia, Luzia Homem,  Policarpo Quaresma, enfim, haverá uma ruptura, que já existe, porque ainda somos um povo que sofre de um preclaro analfabetismo literário, perceptível para poucos, afinal como sentir falta de algo que nunca tivemos? E assim, vamos adentrar ainda mais no poço da incultura.

A escola, sim a escola, que deveria prezar pela preservação da cultura, acaba afastando o jovem da cultura, o espaço que sobra para o ensino das outras disciplinas diminui em muito, inclusive Língua Estrangeira e História, o que daria um debate distinto, não menos importante. Aqui cabe o espanto, como não deixar de alertar, do silêncio, das entidades de classe como academias de letras, de história, sindicatos, pois o que estamos a ver é a retirada de conteúdos essenciais para a formação humana. Perceber que retiram Literatura da Escola e ninguém se manifesta, não se há linhas de reclamação, poucos para defender, revela o quanto há uma desvalorização da literatura em nosso país, tal fato, explica a ausência de escritores, ou até mesmo a nova forma de apreciação Literária, onde a cor, ou interesse sexual do autor é mais relevante do que a obra, talvez... há intenção, método, talvez isso que nas estepes soa apenas como um descuido de ignorantes, não seja um descuido...basta ver como a Academia Brasileira de Letras está a se tornar na Academia Brasileira da Lacração, como o empobrecimento estético afasta a busca no ente de uma verdade objetiva. E aí de nós, nós que estamos a criticar, que estamos a lutar por um Brasil justo, com valores, ai de nós,  que estamos a trilhar as veredas de um Policarpo Quaresma.

(Ricardo Gomes Pereira)

quinta-feira, 28 de abril de 2022

ESG ou ASG – O Ambiente da Dominação Linguística

 


Muito comum o uso de novas palavras para fenômenos novos, também é comum a tentativa de simplificar termos complexos com o uso de siglas, abreviações e acrônimos.  Quando o conceito é estrangeiro, surge o problema de qual tipo usar. Decisão nem sempre fácil, sobretudo quando o termo possui uma função que vai além de relações técnicas, por exemplo, ONU, em inglês temos UN; tal sigla soa estranha: A ONU pretende alertar os países, soaria peculiar: A UN pretende alertar os países; outro exemplo temos em AIDS ( Síndrome da Imunodeficiência Adquirida), comum no Brasil, em vez de SIDA. Além da Eufonia e da tendência de não causar confusão com alguma palavra existente na língua, há também a questão do gerador de semas, quais grupos estão a manipular e usar tal palavra. Essa última adquire importância quando o conceito é algo que entra no campo das obrigações, tal qual o de ESG ou seria ASG?

              ESG é uma sigla para Environmental, Social and Governance que em Língua Portuguesa podemos traduzir como: Ambiental, Social e Governança; assim são os pilares norteadores para uma atuação que seja menos danosa a alguns requisitos ambientais, pré-estabelecidos pelos que sustentam o discurso de ESG.  Bom, podemos então adaptar para Ambiental, Social e Governança, com a sigla ASG. É o que podemos constatar em alguns jornais e revistas, pois  surge em busca de engajamento e de “agenda”, logo a tendência de ampliar o número de pessoas que conheçam se faz presente. Algumas reportagens sobre o assunto usam os dois termos, porém, pesquisando sítios na rede sobre o assunto, constata-se a predominância de um deles: ESG, sobretudo quando pesquisamos imagens relacionadas, porém é comum o uso de ASG quando se pesquisa por fundos nacionais.

              A longo prazo saberemos qual predominará, ou se continuaremos com o uso de duas siglas, o que não  me parece adequado, entretanto, a esperança é de que prevaleça a tradução para sustentar também o idioma das pessoas

              

sábado, 19 de março de 2022

Nomofobia – Qual o Processo de Formação Hibridismo ou Abreviação Vocabular?

 


A palavra nomofobia significa medo irracional de ficar sem o celular por longo tempo, este receio, angústia, ansiedade faz com que a pessoa o tenha sempre ao lado. Essa palavra ainda não é consensual, porém usada desde 2008 e com estudos robustos em 2011. Já temos publicações sobre esse problema sobretudo em jovens, que já nascem com nesse ambiente onde o celular possui um valor afetivo forte.

            A morfologia estuda o processo de formação de palavras, esses processos se repetem e são bem produtivos, vejamos a caso da derivação sufixal onde casa, casinha, casebre, possuem o radical {cas-} que se repete e vamos acrescentando apenas outras palavras (sufixos). Esse é o processo da derivação, quando a palavra é formada por dois radicais, aí temos a composição, por exemplo, passatempo [passa] + [tempo]. Nas composições há um caso especial que é o hibridismo, ou seja, quando unimos radicais de origem diferente, por exemplo: monocultura, onde a palavra [mono-] vem do grego e [-cultura] do latim. Outro processo é a abreviação vocabular, quando diminuímos uma palavra:  motocicleta, tornar-se-á moto

            Voltemos para nomofobia, essa palavra é formada pela junção de um termo em inglês NO-MObile-PHone phoBIA em inglês NOMOPHOBIA, temos aí antes uma elaborada abreviação vocabular, do que a junção de dois radicais de origens distintas, pois a palavra PHOBIA entende-se como junção de PHone e phoBIA, logo há um caso de estrangeirismo, adaptado a nossa língua onde o PH que foi abolido em 1911(primeira reforma ortográfica) é substituído pelo F, ficando assim fobia.


domingo, 13 de março de 2022

Macedo e a Incógnita em “Os dois amores”

 




            Há obras que obscurecem o autor e até mesmo a produção inteira do autor, no caso de Macedo, temos em “A Moreninha” lançado em 1844, um livro que conseguiu não apenas ser o introdutor da teoria do romance, nos modelos da escola romântica, como também foi alvo de elogios por trazer o romance urbano e preconizar o romance histórico e o romance filosófico com sua veia moralizante. O sucesso foi tanto que ganhou a alcunha de “O Macedo d`A Moreninha” Ainda hoje é muito lido e famosa, mesmo para o gosto moderno; Macedo consegue nos transportar para uma época de início de civilização industrial, com histórias ingênuas, porém com vários traçados que vão se resolvendo. Macedo traz o amor sentimental, bailes, cartas trocadas, fofoqueiros, apontando sempre par ao altar, para o casamento e a felicidade conjugal onde termina o romance com seu anel de ouro. Macedo traz digressões morais e seus enredos acabam se repetindo, pois o público esperava isso dele, o romance com caráter prescritivo, uma bula sentimental.

            O livro “Os dois amores” não foge de tal tradição macediana, personagens jovens que se amam e estão separados pelo dinheiro e por um segredo, um vilão, fofoqueiros, pessoas humildes que ajudam os casais apaixonados, enfim, os temperos do romance romântico estão bem dosados na história de Cândido e Cecília. Esse casal de jovens é separado pelo dinheiro, porém com afinidades, o rapaz, órfão que fora abandonado pela mãe e ela, Celina, também órfã em tenra idade, mora com o avô Anacleto e sua tia Mariana, essa uma viúva, apaixonada por Henrique, um amigo de seu marido, que chegou a fugir para a Europa afim de arrefecer o amor que sentia por Mariana e agora, com a viuvez dessa, pôde voltar para um futuro casamento.

             A intriga Macediana, permeada pelas digressões moralizantes dão um toque ajudam o leitor a acompanhar o enredo que acaba se tornando repetitivo, sendo desculpável para época e foco narrativo, por exemplo, a troca de cartas que ocorre por “roubos” de cartas, dando um toque sútil ao romance, o jovem que à noite, escrevia até cair de sono em sua escrivaninha sobre seu amor e o diário de uma jovem sobre o descobrimento do  seu amor, revelam uma sutileza no trato psicológico dos personagens. As amigas de Celina, conversas com alguém a ouvir, o velho Anacleto e sua tristeza interior mesmo durante uma festa, vão deixando pistas e dando acabamento aos personagens, tornando-os próximos de seu público: mulheres e estudantes, ou como diria Sodré: (...) fiel a realidade, nas minúcias, e descambando para o inverossímil no conjunto” (SODRÉ:1964 p.224)

            O título, entretanto, é o que chama atenção, afinal, quem são os dois amores? A polissemia do título é algo bem machadiano e é justamente isso que queremos agora refletir, ou tentar responder, ou problematizar: quem são os dois amores?

            A princípio parece claro tratar-se de Celina e Cândido, o par romântico que desde o início revela a atenção do autor; porém não podemos deixar de perceber como Cândido carrega a questão da mãe durante toda a história, seu modo de ser sorumbático, seu relacionamento com sua tia, ou quando conversa com a mulher de mantilha e relata sobre sua mãe:

“ -Oh! É que, apesar de ser enjeitado, houve forçosamente um homem que foi meu pai, e uma mulher que me concebeu! Esse homem, senhora, é já morto...disseram-mo. Eu sou órfão de pai; mas minha mãe!....Essa, diz-me o coração que ainda vive....e eu amo-a com todo esse fogo de amor que Deus acendeu na minha alma...

- Sem conhece-la?...

- Que importa? Este amor não se gasta, não se escota; esse amor é como fogo do sol, sempre o mesmo, ou cada vez mais ardente. Quando eu encontra minha mãe...Oh! que amar esse de então!” (MACEDO: 1950 p 299)

 

            Assim percebemos que o coação de Cândido é dividido entre esses dois amores, o de Celina, bela jovem, a quem conheceu por acaso, observando os passeios matutinas da jovem sobre um caramanchão e de outro lado esse amor, o amor materno, mesmo sem conhecer a mãe. Esse coração de Cândido em uma divisão que não cria nenhuma emulação, talvez explique melhor o título. Outra hipótese está nos dois casais que farão o final do livro: Cândido e Celine e Mariana e Henrique. O amor de Henrique por Mariana também é desses típicos do romantismo, pois é a mulher de seu amigo e ele acaba fugindo para não causar nenhum transtorno aos dois, durante parte do livro a presença de Salustino com um segredo que poderia prejudicar o casamento, tão almejado, de Mariana com Henrique a torna escrava de Salustino que pretende casar-se com Celina e o tenta com a ajuda de Mariana.

            Mariana também nos traz a questão do amor materno, afinal com a culpa de um aborto, com medo da sociedade da época para tal ato,  Mariana se transforma ao descobrir que seu filho vive, que ela ainda é mãe, não teríamos aí o segundo amor? Por um lado o amor romântico que culmina no casamento, entendido como o  momento de felicidade na vida e de outro o amor materno  entendido como o momento da própria vida?

            Não podemos esquecer de Salustiano, afinal ele em seu amor por Celina representa o velho perante o novo, estamos em uma época de mudança, dentro daquilo que  Gilberto Freyre aponta como “transição do patriarcalismo para o individualismo” (2006 p 200) Assim haveria um amor puro, jovem, pobre na pessoa de Cândido e outro amor velho, patriarcal, endinheirado, sem pudor na pessoa de Salustino.  

            No final do livro as dúvidas cessam, pois quando Celina retira o terceiro botão de rosa e oferta a Candido  aparecem Mariana e Henrique e o autor ressalta que “ Os dois amantes voltaram-se e viram junto de si Mariana e Henrique” (MACEDO: 1950 p.390) Ora, o termo dois amantes é usado em vez de dois amores e o abraço desse quarteto se revela com adoção de Celina e Cândido por Mariana e Henrique e o grande encontro do filho com a mãe, assim fica claro que o amor, que Macedo nos traz, possui dois componentes, sendo o amor conjugal e o amor maternal, com as duas forças motrizes a dominar os homens.

 

 

 

CERQUEIRA, RODRIGOEXTRAVAGÂNCIA ESTUDANTIL A FORMA SIMBÓLICA POSSÍVEL DOS PRIMEIROS ROMANCES E PEÇAS DE JOAQUIM MANUEL DE MACEDO. Novos estudos CEBRAP [online]. 2016, v. 35, n. 1 [Acessado 13 Março 2022] , pp. 177-192. Disponível em: <https://doi.org/10.25091/S0101-3300201600010009>.  

 

Freyre, Gilberto: Sobrados e mucambos:a decadência do patriarcado e o desenvolvimento urbano. São Paulo: Global,2006.

 

MACEDO: J.M: Os dois amores – Col.: Grande Romances Universais vol 12. São Paulo: W.M. Jackson, 1950.

 

SODRÉ, N.W.:  História da Literatura Brasileira Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1964