A questão de que a linguagem contém elementos de classe social, ou
opressão patriarcal, ou raça, ou gênero, normalmente, causa discussões e, não
raro, surgem algumas soluções equivocadas. A proposta de linguagem neutra tenta
resolver parte desse problema, mexendo, sobretudo, em substantivos, adjetivos e
pronomes, que são as classes de palavras que nomeiam ou revelam acidentes dos
seres em geral, as questões sintáticas não levarei em consideração aqui.
O nome linguagem
neutra ou linguagem neutra de gênero, ganha adeptos e até escolas chegam a
usar, o que revela a necessidade de ouvir e entender seus princípios, entender
os questionamentos sobre linguagem não binária. Sabemos que a gramática normativa
trata das normas de uma língua, já a linguagem pode ter variações, daí usarmos
os termos linguagem formal e informal. As soluções que surgem, ou hipóteses,
não raro possuem uma ideologia enraizada e precisam exercer uma pressão social
nos falantes, para se adaptarem a certas regras criadas, assim apesar de buscar
neutralidade, há opção ideológica e ignoram que o preconceito não é algo
restrito a palavra em si, e sim as intenções do falante, uma pessoa
preconceituosa não deixará de o ser, apenas por usar um sufixo diferente.
Já na origem de
nossa Língua, o latim, havia nomes neutros, inclusive havia declinações para
masculino e feminino, na primeira declinação do latim predominam nomes
femininos, mas também há alguns masculinos, como nauta,ae ; já na segunda declinação, predominam nomes masculinos.
Lembremos de que no latim não havia artigo, a Língua Portuguesa substitui as
declinações e usa o suporte dos artigos, quando se mexe em uma Língua, devem-se
levar em conta muitos fatores, que vão além do ele, ela e elu. Além disso, a língua possui uma unidade na
variedade, como expressa Celso Cunha (CUNHA: 1981 p.73) onde a linguagem
expressa o indivíduo por seu caráter criativo, mas expressa também o ambiente
social e nacional, por sua repetição e aceitação.
A Linguagem neutra de gênero procura assim criar
uma taxonomia para nomes, que serão repetidos e ensinados nas escolas, logo
teremos meninos, meninas e menines, a opção pelo sufixo {-e} como fator de neutralidade
pode ser funcional em algumas palavras, porém não é uma regra fixa de que os
sufixos {-a} e {-o} indicam somente masculino e feminino, os substantivos
possuem um conjunto de uniformes que são comuns de dois gêneros, sobrecomuns
e epicenos. Vejamos os comuns de dois gêneros, o que faz a sua mudança é
o artigo: o jovem, a jovem, logo, teríamos "jovene?" os sobrecomuns
possuem um só gênero, a vítima, a criança, apesar da terminação em {-a};
finalmente os epicenos, nomes de animais, possuem uma só forma: sardinha, tatu,
crocodilo, etc. Daí podemos entender como a Língua Portuguesa usa os artigos,
para evitar as declinações do latim, logo não adianta mudar o sufixo e não
mexer no artigo, ou simplesmente usar um artigo {ê} ou {ês}: Vi ê menine com ês
colegues, ressaltemos que os artigos também indeterminam os seres, não apenas
indicam gênero.
No caso dos
adjetivos também segue o mesmo bonde, muitos são comuns de dois gêneros: feliz,
triste, alerta, estudante, etc. No caso dos pronomes há um aumento substancial
com a terminação em {-u} ou {-e} delu, elu, aquelu, mesme, sue, pouque,
algumes, nenhumes, etc. Essas variações não são muito funcionais e ampliam
consideravelmente o campo classificatório, gerando eufonia, cacofonia e
confusão, o que pode ir de encontro ao que se deseja. M. Bakhtin (BAKHTIN: 2010
p294) dividia as palavras em três aspectos: como palavra da língua neutra, como
palavra alheia e como minha palavra, logo é o papel da experiência discursiva
individual que gera o preconceito e não a palavra em si, isolada, ou seja,
mudar a forma do discurso, não significa mudar o discurso.
Resumindo: I- A
língua possui neutralidade, a intenção dos interlocutores que gera o
preconceito; II - a terminação não é o fator que caracteriza o gênero e sim o artigo;
III - gênero gramatical é diferente de gênero musical ou gênero literário em
que há vários, ampliar pode gerar mais confusão e cacofonia; IV - dificultará a
linguagem e a comunicação com mais flexões e particípios: alune, aluninhes
ou O aluno estava cansado, A aluna
estava cansada e alune estava cansade e V – a língua possui saídas em seu
próprio sistema para retirar esse caráter binário.
Sobre o último
ponto, a melhor opção, haverá o uso da própria gramática, o entendimento da
metalinguagem (infelizmente houve um paulatino afastamento do estudo gramatical
nas escolas) assim haveria como deixar o uso menos “binário”, com menos marcas
de gênero! E.g.:
Os alunos conversaram com o diretor da escola.
ou
Discentes conversaram com a autoridade escolar.
Vale ressaltar
que as questões como eufonia serão deixadas para as próximas gerações e que o
uso dessa linguagem também necessita da aprovação do interlocutor, ou seja,
como a pessoa quer ser tratada, o que não retira do enunciador o suporte
ideológico, os indivíduos adequariam seus discursos, mas continuariam ou
aumentariam seu preconceito, sobre essa questão do discurso social ressalta
Fiorin: Seu dizer é a reprodução inconsciente do dizer e seu grupo social. Não
é livre para dizer, mas coagido a dizer o que seu grupo diz (FIORIN: 2000
p.42). Essa busca de harmonia comunicativa é algo plausível, porém há o cuidado
em exigir neutralidade apenas para se adequar aos próprios princípios
ideológicos, ou “identitários”, quem manipula as palavras quer manipular o
mundo.
(Ricardo Gomes Pereira)
Referências Bibliográficas:
BAKHTIN, Mikhail: Estética
da criação verbal trad. Paulo Bezerra. 5.ª ed. São Paulo: Editora Martins
Fontes, 2010.
CUNHA, Celso: Língua
Portuguesa e realidade brasileira. Col. Temas de todos os tempos vol.13 8ª
ed. Rio de Janeiro ed. Tempo Brasileiro, 1981.
FARACO, Carlos Emílio & MOURA, Francisco Marto de: Gramática 3.ª ed. São Paulo Ed. Ática:
1988.
LAU, Diego Hélinton:
O USO DA LINGUAGEM NEUTRA COMO VISIBILIDADE E INCLUSÃO PARA PESSOAS TRANS
NÃO-BINÁRIAS NA LÍNGUA PORTUGUESA: A VOZ “DEL@S” OU “DELXS”? NÃO! A VOZ
“DELUS”! Simpósio Internacional em Educação Sexual, 2017 Universidade
Federal do Paraná. Disponível em http://www.sies.uem.br/trabalhos/2017/3112.pdf
acesso em 19/09/2020.
FIORIN, José Luiz: Linguagem e Ideologia 7.ª
ed. São Paulo Ed. Ática: 2000